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As musas - Melpômene


Melpômene, século II

Em outros momentos, sugerimos que o canto e a declamação, a inspiração para a poesia e a música, são dons que “transitam” entre algumas das musas inspiradoras da tradição grega. Isso ocorria menos por alguma confusão entre os atributos dessas figuras divinais e mais por conta do que poderíamos chamar de “divisão do trabalho artístico” na Grécia da Antiguidade.


Havia o orador político, o debatedor, aquele que discursa, inflama pelas palavras que incitam à ação, protegido por Calíope. Havia o poeta erótico, que encanta ao apelar à beleza e aos sentimentos, inspirado por Erato. Havia o músico, instrumentista, aquele que consegue elevar o espírito do ouvinte pelas melodias que produz, assistido por Euterpe. E havia aquele que poderia produzir disso tudo um pouco, e ao mesmo tempo, tecer uma narrativa que acontece num espaço muito especial, invenção grega: o teatro.


No teatro, vê-se uma realidade paralela e um espelho; no palco, fala-se daquilo que cerca o cotidiano, por meio de alegorias, sátiras, exageros, distorções; contorções no real que dele destilam o sumo, muitas vezes revelando - com potência e clareza impossíveis pelos mecanismos comuns - o que há de mais sublime e terrível entre nós. No teatro vale quase tudo, e autores teatrais, atores e demais artistas responsáveis por desnudarem o humano diante de humanos são aqueles que pedem os favores da musa Melpômene.


“A compositora de tramas”, “a cantadora”; assim a chamavam os gregos. A própria imagem que abre este post traz uma representação conhecida (embora tardia) de Melpômene: uma mulher jovem, portando uma máscara ou um véu em uma das mãos e, por vezes, uma clava, taco ou punhal na outra, todos representações das reviravoltas dramáticas ocorridas nos espetáculos teatrais. Note-se que apoia-se na perna direita, enquanto a esquerda sustenta-se bem alta, evidenciando um movimento um tanto inusitado, se pensarmos em figuras femininas normalmente retratadas em estátuas. Ambos os pés estão calçados, o que indicaria que ela veste as sandálias de cano alto ou sapatos fechados próprios de muitos atores da tradição Clássica, conhecidas como coturnos. Tais calçados ampliavam o efeito das passadas, pisadas e volteios dos atores, dando-lhes maior amplitude de movimentos, dignos de serem notados pelo público.


A máscara em questão pode ser a de alguém conhecido da audiência, ou para uma melhor caracterização do personagem. No entanto, Melpômene é comumente identificada como a inspiradora da tragédia, o gênero teatral grego que tece narrativas com acontecimentos sublimes e personagens fortes que, não raro, caminham para encerrar a trama de forma funesta, terrível. Não se trata de opor tragédia e comédia, mas de indicar o fato de Melpômene ser mais associada à primeira, enquanto a segunda parecia derivar (aqui os relatos se movem como as águas de um rio caudaloso) de inspirações dos sátiros, de Dioniso ou mesmo dos chamados “baixos instintos” identificados pela medicina grega.


Seu nome, em grego, também evoca outro adjetivo, “a melodiosa”, no sentido - talvez - de Melpômene ajudar os artistas a envolverem a audiência sedutoramente em uma narrativa da qual não se desprenderão até o final. Essa melodia lembra o encantamento, o feitiço. Algumas versões fragmentadas da mitologia grega atribuem a Melpômene, por exemplo, a maternidade de diversas sereias (ou ninfas das águas marinhas). Essas criaturas, inclusive, criadas e damas de companhia de Perséfone, raptada por Hades, o deus do mundo inferior; a mãe de Perséfone, Deméter, deusa da agricultura e da fecundidade da Terra, desespera-se e amaldiçoa as sereias por não terem defendido sua filha. As sereias tornam-se um dos terrores do mares, criaturas de rara beleza, cantadoras que enlouquecem os homens que, por sua vez, se atiram ao mar em sua busca, sem saber que seriam - fatalmente - devorados. Qualquer semelhança com o Teatro - assim, com o "T" maiúsculo que merece - talvez não seja mera coincidência.



[Artista romano desconhecido. - Melpômene, século II.

Mármore, dimensões indeterminadas.]



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