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As musas - Tália


Giovanni Baglione - Thalia, musa da comédia

O riso já foi tido como atributo exclusivamente humano. Monteiro Lobato, escritor brasileiro, descrevia o homem como “o animal que ri”. Ocorre que rir e sorrir, como muitos memes e bizarrices da vida cotidiana costumam apontar, não é nossa exclusividade. Animais - especialmente entre os chamados mamíferos superiores - sorriem, riem e até gargalham. Estudos de medições de atividade cerebral nesses animais costumam apontar, nas mais variadas circunstâncias, alegria ou prazer iluminando as mesmas áreas, com as respectivas respostas corporais. Do abanar de um rabo a um ronronar, não é a boca - necessariamente - que ri.


Riso e humor, todavia, são coisas diversas. O humor é do humano. Embora existam inúmeros compêndios sobre o tema, façamos - por ora - jus ao título deste texto: o humor é atributo humano, presenteado pelos deuses. E o riso está sempre ao lado do inusitado, próximo do imprevisto, abraçado a um modo mais colorido de se ver a vida. Não à toa, Tália, a musa grega conhecida como “a alegre, a das flores, aquela que faz florescer”, responde por esse gênero de comportamento humano quando voltado para as artes. Tália não é a musa do bom humor (assim como Melpômene não seria a do mau humor), também não é aquela que provoca o riso; muito menos a que - literalmente - faz os campos florescerem (tarefa atribuída principalmente a Deméter, entre outras entidades). Tália é a inspiradora da produção de conteúdo alegre, de temática bem humorada, leve. Portanto, Tália é a inspiradora da comédia no gênero teatral, mas também no musical e no literário.


Embora o humor esteja presente nos humanos, cabe a Tália inspirar o dramaturgo, o artista em seu proceder para alcançar o riso, para elevar as pessoas numa percepção mais aguda e - quiçá - despreocupada das coisas. Ela traz um sopro primaveril para a criação artística, que atinge o espectador, o ouvinte com suavidade e certa dose de necessário encantamento, numa operação semelhante (porém em direção oposta) à realizada por sua irmã Melpômene com relação à tragédia grega.


Vale pontuar que tragédia e comédia não são opostos em si, mas elementos presentes na existência humana, ambos diretamente tributários de uma divindade grega colossal, porque benfazeja e assustadora na mesma proporção: Dioniso (o Baco entre os romanos). Filho de Zeus (o rei dos deuses olímpicos, o Júpiter dos antigos romanos) e a mortal Sêmele, Dioniso foi vítima de uma fatalidade: sua mãe, trazendo-o ainda no ventre, estava prestes a perecer em um incêndio. Zeus chegou tarde demais para salvá-la, mas pôde fazer algo pelo filho - retirou o feto do ventre da mãe e o alojou em sua coxa, para que a gestação se completasse (falaremos desse e de outros acontecimentos curiosos envolvendo Dioniso em momento oportuno).


O fato é que Dioniso tornou-se o deus a representar a unidade entre a vida e a morte; o deus da liberdade mas também o do descontrole, o deus a patrocinar a alegria mais delirante e a tristeza mais profunda. Foi apresentado, também, como a divindade dos êxtases, especialmente os sexuais: o adjetivo “dionisíaco" até os dias atuais, ainda descreve o arrebatamento, o entusiasmo, a anarquia, a confusão, o irracional. Retrato dos contrastes de humanos e mortais, sempre oscilando entre a sanidade e a loucura, era também o deus das uvas e do vinho, seu mais precioso subproduto. A embriaguez resultante era o estado de ilusória aproximação ao deus, do mergulho no imprevisível e no desconhecido que cada um de nós traz dentro de si.


***

Tudo isso merece consideração ao voltarmos à palavra comédia, que deve sua etimologia grega a kōmōidía, ou “comédia, poesia satírica”, e kōmōidos,ou, ou “que entoa canções burlescas nas festas de Baco”. A sátira, portanto, derivada da influência de Dioniso, é o gênero ao qual Tália está associada. Na imagem que abre este texto, nós a vemos em um espaço semi-fechado, com o esboço de monumentos de estilo greco-romano ao fundo, recortados por pilares de diversos formatos. A imagem encontra-se aparentemente recortada, como se não finalizada, pois o espaço que envolve a personagem principal não apresenta continuidade lógica com o fundo (inferência supostamente verificável apenas diante do original). De qualquer modo, Tália é uma mulher, representada aqui com as vestes de inspiração greco-romanas, e elementos comuns em suas várias representações em pinturas e esculturas: calça tamancos (associados à amplificação dos efeitos - neste caso, cômicos - de palco, como exposto no texto sobre sua irmã Melpômene), porta uma coroa de hera (em nova alusão a Dioniso) e segura, na mão esquerda, uma máscara cômica, enquanto a aponta com o indicador da mão direita. Seu rosto, acompanhado pelo olhar e a boca entreaberta, volta-se para a diagonal esquerda superior da imagem, sugerindo um diálogo com algo ou alguém invisível para nós. Rosto e máscara, dedo e olhar fecham um circuito visual nesta conversação silenciosa e, por que não, animada e íntima.


O riso experimentado em uma situação cômica na arte é resultado direto do quanto os envolvidos em sua produção atenderam aos desígnios de Tália. Ela também é a musa da poesia idílica que, no Mundo Antigo, era a poesia curta, breve, muitas vezes relativa aos temas pastoris, leves. Tália, a guardiã da sutileza, da contemplação do belo e do bom humor talvez seja a mais providencial dentre suas irmãs: torna-se a musa do alívio em meios às agruras e também a do autoconhecimento, lembrando-nos de que a vida é preciosa demais para ser levada a sério o tempo todo.



[Giovanni Baglione (1566-1643). - Thalia, musa da comédia, s.d.

Óleo sobre tela, 195x150 cm.

Museu de Belas-Artes, Arras, França.]





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