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O Colosso

Atualizado: 31 de dez. de 2020


O Colosso, 1808-1812 - Francisco Goya y Lucientes (1746-1828)

Este texto tem mais de vinte anos. É um curioso testemunho de uma trajetória que se iniciava sem que - à época - me desse conta: já estavam dadas, em linhas gerais, algumas das coordenadas que definiriam meus interesses em História pelos anos (décadas?) seguintes. Na origem, exigiu-se que o texto fosse curto e, ao mesmo tempo, abordasse um documento histórico de maneira pouco usual ou trouxesse um tipo de documento histórico a ser interpretado de forma mais alegórica. E pensar que - nos anos subsequentes - muitas vezes esta e outras imagens de um célebre artista espanhol seriam objeto de interpretações tão variadas e férteis feitas por tantos de meus alunos...


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O Colosso, do pintor espanhol José Francisco Goya y Lucientes (1746-1828), foi pintado entre os anos de 1808 e 1812. Goya, desde 1789, exercia a função de “Pintor da Câmara do Rei”, à serviço do monarca Carlos IV e de sua Família, produzindo inúmeros retratos e quadros com motivos que envolviam a realeza e os nobres. Antes disso, para que conseguisse o cargo, confeccionou várias estampas para tapeçarias, nas quais apresentava cenas cotidianas do povo espanhol; conquistou a posição pela qualidade de seu trabalho, reconhecido depois de diversas tentativas. Aos poucos, alguns dos quadros pintados para a corte foram se tornando mais e mais irônicos, tendência sempre muito forte nas obras do pintor, já que este, ao tomar mais contato com a vida e as intrigas políticas que envolviam a Família Real, tratou de satirizar as figuras mais proeminentes entre a realeza, usando sempre tanto de sutileza quanto de característica acidez. Depois de algumas decepções e desentendimentos para com certos membros da corte, distancia-se da mesma, dedicando-se a pintar predominantemente as cenas cotidianas das vilas da Espanha, protagonizadas por desconhecidos; sua série de gravuras intitulada Divertimentos Populares, em que retrata os motivos mais próximos da vida do povo espanhol, é concebida justamente nesta época (aproximadamente entre 1790 e 1800). Em 1807, começa a se desenhar uma situação tensa na Espanha: internamente, desordens políticas e uma conspiração que almejava a eliminação do príncipe herdeiro (posteriormente conhecido como Fernando VII), estavam minando a posição do Rei. No mesmo ano, fora do país, as tropas do exército de Napoleão Bonaparte já estavam à fronteira da Espanha. Carlos IV, negociando secretamente com Napoleão, acaba por permitir a invasão napoleônica na Península Ibérica, parte do plano do general francês para consolidar seu “Bloqueio Continental” contra os ingleses. No ano seguinte, Carlos IV abdica (com a aprovação do povo, já que o clima tenso favorecia as esperanças no príncipe herdeiro), em favor de seu filho, e este, pressionado pelas graves crises políticas do país, vê-se forçado (juntamente com o pai) a atender à exigência de Napoleão, feita em finais de 1808: seu irmão, José Bonaparte, ocuparia o governo da Espanha. A situação do país diante da abdicação de Carlos IV, exigida pelas circunstâncias, e a “rendição” do sucessor natural - Fernando VII - ao irmão de Napoleão, com a conseqüente tomada das cidades espanholas pelo exército francês, instaura um ambiente de violento conflito, já que o povo espanhol lutava por sua terra, através de guerrilhas, contra os soldados franceses. A resistência feroz do povo perdura até 1814, quando o império napoleônico já se encontrava mortalmente enfraquecido, permitindo a condução de Fernando VII ao trono. O Colosso, de Goya, é iniciado e concluído em meio a todos esses acontecimentos, de fundamental importância para o entendimento da obra.


Goya preocupou-se muito com a situação espanhola no período, sendo que entre muitos outros quadros, destaca-se Os Fuzilamentos de 3 de Maio, concluído em 1814, considerado uma poderosa síntese de todo este momento. Posteriormente, Goya cria mais uma de suas longas séries de gravuras, intitulada Desastres da Guerra, iniciada por volta de 1819, onde pintou as batalhas, torturas, mutilações e a morte que acompanharam os espanhóis durante os conflitos contra o governo de José Bonaparte. O Colosso parece ser o momento inicial, captado por Goya, do início deste impasse, quando o medo e a incerteza eram os fatores determinantes, e o próprio pintor ainda não tinha a real dimensão dos horrores que seriam tão bem retratados em sua série de gravuras sobre os desastres da guerra.


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Comecemos por estabelecer dois pontos principais na imagem: o próprio Colosso e a multidão abaixo dele. O Colosso têm o aspecto de um homem bastante robusto, com as costas, o dorso e os braços bem fortes e rígidos. Já parece ter os músculos firmes naturalmente, mas estes estão particularmente enrijecidos na imagem. Ele tem a perna esquerda posicionada à frente da direita, o que indica que estaria caminhando ou girando o corpo, ao apoiar as pernas desta forma, buscando equilíbrio. O braço esquerdo está parcialmente levantado, com o braço e o antebraço a formarem um ângulo reto; o punho, muito duramente fechado, como se a esmagar alguma coisa, também é mais um indicativo da força absurda deste ser. Se a perna direita está posicionada atrás da esquerda e o braço esquerdo flexionado (sendo que o direito se encontra encoberto), poderíamos acreditar que está em movimento, caminhando. Sua expressão é quase indecifrável, já que tem o rosto parcialmente encoberto e seus cabelos e barba o escondem mais ainda. Seus olhos estão fechados e o cenho não parece estar franzido; encontra-se cercado por uma escuridão, localizada na parte superior de seu corpo, sendo que esta se parece com as nuvens de uma tempestade que se anuncia; uma espécie de névoa, que aumentaria sua monumentalidade, cerca-lhe a região da cintura.


Uma multidão de pessoas coloca-se logo abaixo, destacando-se em primeiro plano, em relação ao Colosso. As pessoas correm todas na mesma direção; eles fogem de algo, já que não correm de maneira ordenada: estão se atropelando, alguns à cavalo, outros à pé: todos em desesperada fuga. O pintor coloca muito bem a idéia de que é uma massa que está em fuga e não indivíduos; o mais importante - aqui - é a noção do conjunto expressa num coletivo aparentemente desordenado.


O que faz a multidão se por em fuga? Coloquemos uma primeira (e arriscada) hipótese: o Colosso assombraria as pessoas. Ele poderia facilmente ter pisoteado a multidão ou ameaçaria fazê-lo, (se já estivesse antes a caminhar), já que a direção em que parece andar o faria ter passado por cima da dita multidão ou muito perto. Ocorre que o Colosso não caminhava antes do momento retratado pelo pintor, pois parece se distanciar do ponto de onde teria vindo instantes atrás, sem deixar nenhuma espécie de rastro. Ele não pode ser a verdadeira ameaça, já que não avança em direção aos que parecem ameaçados: passou a caminhar ou a mover-se a partir do momento em que o pintor o coloca em cena. Como isso é possível? Se as pessoas vissem um ser deste tamanho, e ele fosse a ameaça, possivelmente fugiriam, aterrorizadas. E ele - talvez - os perseguiria, mas não o faz, retirando-se da cena em outra direção.


O Colosso parece ter surgido já de frente para a cena e estaria girando para a esquerda, como nos indica a posição do seu corpo, com a perna esquerda e o braço esquerdo à frente, dando-nos a impressão de que está entre o fim do movimento de se voltar e o início do de caminhar, fazendo-o com impressionante leveza, já que as nuvens à altura de suas nádegas, o braço erguido, o peito e as costas bastante volumosos e a cabeça reclinada o tornam mais “leve”. Além de sua monumentalidade, essa “aparição” demonstra, pela escala, que se trata - sem dúvida - de uma criatura sobre-humana.


Ele, então, “aparece” para quem? A população já deve estar em fuga ou correndo há um certo tempo, com pessoas carregando ou empurrando outras; algumas encontram-se caídas ou, aparentemente, imóveis. Correm há um certo tempo, também porque são um agrupamento muito grande e que parece se dispersar, apesar da forte sensação de unidade. Tal uniformidade é proporcionada primeiramente pela fuga e depois pela multidão em si. Assim, podemos apontar que o Colosso é um fenômeno invisível para as pessoas em fuga, ainda mais porque não poderia ter provocado esta reação continuada se surgiu repentinamente no espaço entre os presentes. Porém, mesmo invisível para os presentes na pintura, ele existe.


Suas simultâneas leveza e magnitude nos revelam algo mais do que sua invisibilidade para a multidão: não é uma criatura fisicamente presente, pois parece não causar o distúrbio que causaria se fosse realidade física. Esta figura, invisível para a multidão e visível para nós, representa algo intangível: o espírito do corajoso povo espanhol, forte, robusto, aparentemente invencível. Um espírito que brota das multidões e que pode fazer tremer qualquer parte do país, um ente descomunal, como um Atlas ibérico. A multidão, como já descrito, apesar de trazer cenas individuais (tropeços, quedas e a corrida desenfreada), forma um todo muito coeso não só por ser um grupo de humanos (possivelmente membros de uma mesma comunidade), mas porque todos eles têm um objetivo bem claro: fugir, o mais rápido possível. O que estaria no canto direito da planície (em relação ao observador), que poderia ameaçar tanto este povo de força descomunal? É difícil saber o que está presente naquele canto da imagem, sendo que o mesmo não só está pouco iluminado, como também torna-se complicado identificar os elementos que o constituem. A suposta ameaça assume um ar misterioso, ampliado pelo aspecto que o céu escuro lhe imputa.


Quando da criação da obra, a Coroa espanhola não estava nem mais ameaçada: já se perdera nas mãos de um estrangeiro. As tropas do irmão de Napoleão Bonaparte ocupavam os principais pontos da Espanha e eram auxiliadas pela posição dúbia assumida pela Coroa espanhola, pois Carlos IV fez um acordo secreto que permitiu ao general francês ocupar a terra e passar a combater os revoltados civis. O Colosso, por ora, retira-se da batalha, pois o medo do povo faz seu espírito recuar. Mas retira-se, inicialmente, com o punho e os olhos fechados, raivoso, por não poder lutar neste momento de surpresa; inconformado com a necessária retirada, forçada pelo grande poder de uma ameaça difusa, que suscita no espírito espanhol o sentimento de revolta pela usurpação, por parte dos franceses, dos espaços e de tudo o que pertencia ao povo; tudo isso, ainda complementado pela traição da Coroa para com seus súditos, quando da entrega do trono ao inimigo. A ameaça é visivelmente indefinida, mas sua presença é perfeitamente inteligível. O mapa da Espanha, no seu nordeste, faz fronteira com a França. Imaginemos que a extrema direita da tela, lugar onde parece colocar-se a grande ameaça ao Colosso, representa a fronteira com a França, de onde, realmente, vem a ameaça. O Colosso se retira para o oeste, interior da Espanha, assim como a multidão, que procura - no mesmo interior do país - uma forma de se proteger e contra-atacar. Os touros (possivelmente liberados pela multidão por complicarem sua fuga simbólica), acabam dispersos para o único lado em que não se colocava nenhum dos elementos vivos da cena, completando a tripla dispersão.


Goya utiliza-se no seu “Colosso” de um recurso pouco explorado durante toda a sua carreira: um momento de alegoria romântica, onde a personagem do título representa o que há de mais poderoso para o romântico: o povo e a sua imensurável força; o espírito de uma multidão presente, unida pela busca da liberdade (um dos grandes mitos do século XIX). Nunca os elementos constituintes do objeto sublime romântico (desordem, enigma, grandiosidade, terror, obscuridade, infinitude, sobrenatural, etc.), ativamente ligados aos sentidos, estiveram tão presentes e celebrados por este pintor, considerado um realista racional, posto que pintava muitas cenas e ações cotidianas, com o compromisso de debatê-las enquanto prática. O Colosso é um debate, que começa com a dúvida e a derrota, mas retratado com esperança pelo pintor, já que o gigante se retira para poder voltar mais forte e por fim, vencer. Na realidade, ele não se equivocou: o Colosso, por fim, venceu.


[Francisco Goya y Lucientes (1746-1828). - O Colosso, 1808-1812.

Óleo sobre tela, 116x105 cm. - Museu do Prado, Madri, Espanha.]




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